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O silêncio do sucesso

abril 18, 2019

Ontem eu descobri um canal fantástico no YouTube. O EngineerGuy apresenta vídeos que cumprem a proeza de trazer muita informação e muito entretenimento ao mesmo tempo. Os vídeos dissecam objetos banais do cotidiano e revelam a refinada engenharia necessária para criá-los.

Seja uma latinha ou uma caneta retrátil (que precisou de 66 pessoas para ser desenvolvida), percebi que é fácil ignorar a enorme quantidade de energia e de tempo necessários para criar invenções que hoje são tão básicas. Num tempo em que essas coisas não existiam, alguém precisou criá-las.

O sucesso é bom e gostoso, mas é também pernicioso. Os louvores ao que deu certo frequentemente escondem a enorme quantidade de fracassos antes dele. Felizmente o canal tem também séries de vídeos que exploram o que deu errado e as razões do fracasso. Não é raro um esforço enorme ser empregado em algo que não dá certo.

A beleza desse processo é que nada é em vão. Os fracassos tornam-se aprendizados, que colaboram na criação de outras soluções com mais chance de sucesso.

Na história humana, as gerações mais novas caminham fiadas no progresso que fizeram as mais velhas. Nossos avós não tiveram um smartphone por boa parte da vida, e os avós deles não tiveram televisão. Os eletrônicos são a parte mais evidente dessa evolução, mas a verdade é que ela nos cerca por toda parte, dos sapatos que calçamos ao xampu que usamos num banho quente, coisas simples que já foram luxos de reis.

Tomemos como exemplo a caixinha de música a corda. O mecanismo que faz tudo acontecer talvez passe batido, apesar de ter sido desenvolvido e aprimorado durante muitos anos. O refinamento de uma ideia envolve humildade e disposição para aprender, pois podem ser necessárias muitas tentativas para acertar. Às vezes, não é o dono de uma ideia que colhe os frutos, e sim os sucessores dele.

Depois de ver vídeos assim, tive uma profunda gratidão pelas pessoas que criam coisas. A resolução de problemas do cotidiano passa por um processo que demanda tempo, energia, esforço e privação.

Basta apenas colocar os pés na água da história das invenções para percebermos que, no mais das vezes, não é o melhor produto que vence, mas aquele que é bom o bastante. Assim é tudo na vida. Precisamos ter olhos atentos para perceber as dificuldades de nossas vidas e ousadia para criar soluções para elas. Não falo só dos problemas materiais, mas dos relacionais também.  A maioria de nós não vai ajudar a desenvolver o próximo gadget que vai revolucionar o mundo, mas pode ter uma vida mais criativa e feliz.

O que fazemos hoje pode ajudar ou atrapalhar aqueles que virão depois de nós. Ainda que não encontremos soluções para todos os problemas, é nossa obrigação buscá-las. Recebemos um legado e temos de passá-lo melhor do que quando o recebemos.  Como o Engineerguy mostra, não precisamos tornar o mundo perfeito – basta que, entre erros e acertos, o deixemos bom o bastante, um passo de cada vez.

Jogos violentos influenciam?

abril 5, 2019

videogame

(Nota: esse post tem muitos links. Para facilitar a leitura, coloquei todos eles ao final. Assim você pode ler sem interrupção e sem se preocupar se vai se esquecer de clicar em algo interessante).

Resposta curta: sim.  Agora vamos para a próxima fase.

Sempre gostei muito de jogar videogame. Quando eu era pequeno, meu pai comprou um Mega Drive do meu primo e me deu de presente. Esse console foi um dos meus brinquedos favoritos, mesmo que eu não conseguisse zerar nenhum jogo nele.

Na época, eu aguardava ansiosamente as sextas-feiras pra ir com ele alugar uma fita na locadora. Quando cresci um pouco, ganhei uma carteirinha com meu nome – ainda lembro a senha que usava para confirmar o aluguel: 1836.

Meus primos ganharam um Super Nintendo, e logo eu ganhei um também. Com um pouco mais de maturidade e com a ajuda deles, comecei a sentir o gostinho de chegar até o final de um jogo. Na casa deles, as regras eram mais duras e eles só podiam jogar nas férias. Na minha casa, minha mãe me deixava jogar sempre, desde que eu tirasse notas boas.

Logo eu ganhei um PlayStation, o primeirão, com seus gráficos quadrados. Estranhei um pouco e, até hoje, acho que os jogos da era 16 bits, Super Nintendo e Mega Drive, têm gráficos melhores do que o PS1, salvo algumas exceções, como a saga Crash e o falecido Einhander (saudades).

Graças a Deus, o tempo passou e eu tive a oportunidade de jogar muita coisa. Com trinta anos, pude ter várias experiências marcantes com os videogames. Já me alegrei, me entristeci, me irritei, me surpreendi e me consolei na frente de um console. Hoje eu tenho tantos jogos que a tarefa de completar todos tornou-se inviável, considerando o tempo que tenho para jogar (infelizmente).

Na minha vida, o videogame foi uma grande ferramenta de aprendizado. Foi por causa dos jogos que eu quis aprender inglês, e não porque era importante pro meu futuro. Na infância, cheguei a jogar Megaman com um dicionário inglês-português no colo, pra traduzir cada palavra e assim entender o que os personagens falavam. Não deu muito certo, claro, mas deu motivação pra aprender (só deu ruim quando comprei a edição japonesa do Megaman X5).

Jogos digitais também me ensinaram muito sobre arte e beleza, já que a maioria dos que experimentei tem um senso estético agradável. Naqueles que possuíam extras, pude ver os rascunhos dos personagens a as ideias iniciais. E nem vamos falar das trilhas sonoras icônicas, que foram uma grande influência na minha percepção musical. Ainda escuto muitas delas hoje em dia.

Minha história não é incomum. Muita gente da minha geração teve acesso ao videogame e as gerações sucessoras tiveram mais ainda. Essa cultura ultrapassou as fronteiras do entretenimento e avançou pelos campos mais inusitados. A gamificação das coisas virou um princípio de aprendizado e entrou em nichos inimagináveis, como a educação e a mobilidade urbana.

Agora vamos entrar na parte complicada que são os jogos violentos. Sim, eu e muita, muita gente jogamos coisas assim.

O debate em torno dos jogos virtuais, em especial desses, é sempre recorrente, e por boas razões. Os responsáveis por tiroteios em locais públicos frequentemente mencionam esse tipo de mídia em seus escritos e postagens em redes sociais. O caso mais recente é o de Suzano, repetição do que se viu na escola do Realengo e nos cinemas de Denver e de São Paulo, por exemplo. Por causa desses terríveis episódios, sempre há quem fale em proibi-los e até em criminalizá-los irrestritamente.

A violência, porém, não é novidade nas obras intelectuais, muito menos invenção dos jogos. Convivemos com esse elemento desde muito tempo, começando com histórias faladas, depois imagens, esculturas, livros, filmes e, na história recente, jogos. O que muda nessa escala é o envolvimento, já que o jogo nos coloca como parte da ação, e não apenas como espectadores passivos.

O envolvimento e a interatividade são relevantes porque crescem à medida que a tecnologia evolui, aumentando a imersão no jogo. Muitos comentaristas da internet, especialistas em desperdício do tempo alheio, dizem que, se uma pessoa não consegue distinguir fantasia de realidade, ela tem problemas, mas essa é uma linha cada vez mais borrada quando o assunto é tecnologia e arte digital. Os desenvolvedores trabalham para tornar os jogos cada vez mais imersivos e viciantes.

E, sim, há jogos horripilantes, que exploram o que há de pior nos seres humanos. Alguns já nascem com o objetivo de chocar, outros fazem piada da brutalidade, assim como muitos quadros grotescos que já vimos expostos em galerias de arte. Há jogos que forçam o jogador a cometer terríveis atos de crueldade e outros que oferecem a sanguinolência como opcional.

A maioria, porém, usa a violência como parte da experiência, não como fim. Alguns desse grupo escorregam carregando desnecessariamente nas tintas – estou olhando pra vocês, GTA V e CoD. Quando isso acontece, muita gente relata seu desconforto em fóruns especializados e vídeos no Youtube.

Apesar disso, jogos violentos não transformam pessoas equilibradas e pacíficas em assassinos cruéis. O mercado de jogos hoje é maior do que os de filmes e de música. É uma mídia amplamente consumida no mundo. Assim, colocar os terríveis massacres na conta dos jogos é simplista e irresponsável. Eles são, sim, um componente dessas tragédias, mas trazem também benefícios, como melhora da coordenação olho-mão, do pensamento estratégico e do gerenciamento da atenção. Esta palestra do TED tem mais informação sobre isso.

Como tudo na vida, jogos podem ser bons ou ruins para nós dependendo da forma que os utilizamos. Há jogos que seria melhor que nem existissem e há jogos que todo mundo deveria experimentar, da mesma forma que acontece com livros e filmes. Jogos, violentos ou não, influenciam para bem e para mal, e precisamos ficar atentos aos conteúdos que são expostos a nós e aos mais jovens, bem como ao tempo que dedicamos a essa atividade. A atenção às pessoas também é essencial para detectarmos, se possível, quando alguém precisa de ajuda e não tem espaço para falar.

Mesmo sendo adulto e tendo pouco tempo para jogar, ainda mantenho meu console pra fins de semana mais tranquilos. Assim como eu, muita gente ainda colhe benefícios dos jogos e não pretende abandonar tão cedo essa forma de lazer. O debate em torno dos jogos violentos serve para percebermos que temos, sim, de prestar bastante atenção ao que estamos jogando, lendo e vendo, e que a ideia de proibir ou criminalizar essa mídia seria jogar fora não só a água suja da banheira, mas menino e tudo.

 

Links do texto:

educação

mobilidade urbana

sempre há quem fale em proibi-los e até em criminalizá-los irrestritamente

viciantes

O mercado de jogos hoje é maior do que os de filmes e de música

Esta palestra do TED tem mais informação sobre isso